domingo, 23 de agosto de 2009

As cidades visíveis


As cidades delgadas
Se quiserem acreditar, ótimo. Agora contarei como é feita Otávia, cidade-teia-de-aranha. Existe um precipício no meio de duas montanhas escarpadas: a cidade fica no vazio, ligada aos dois cumes por fios e correntes e passarelas. Caminha-se em trilhos de madeira, atentando para não enfiar o pé nos intervalos, ou agarra-se aos fios de cânhamo. Abaixo não há nada por centenas e centenas de metros: passam algumas nuvens; mais abaixo, entrevê-se o fundo do desfiladeiro.
Essa é a base da cidade: uma rede que serve de passagem e sustentáculo. Todo o resto, em vez de se elevar, está pendurado para baixo: escadas de corda, redes, casas em forma de saco, varais, terraços com forma de navetas, odres de água, bocós de gás, assadeiras, cestos pendurados com barbantes, monta-cargas, chuveiros, trapézios e anéis para jogos, teleféricos, lampadários, vasos com plantas de folhagem pendente.
Suspensa sobre o abismo, a vida dos habitantes de Otávia é menos incerta que a de outras cidades. Sabem que a rede não resistirá mais que isso.
Ítalo Calvino, As cidades invisíveis

As Cidades Invisíveis, literatura surrealista, é uma obra estruturada em mini-contos que apresentam fragmentos de conversas entre Marco Polo e Kublai Kan. Pode-se dizer que o objetivo de Calvino é mostrar um retrato de cidades fascinantes, e fantásticas, perdidas num suspenso espaço-temporal onde os bazares e as rotas de caravanas se cruzam com problemas de tráfego e arranha-céus, cada uma com uma característica que a marca e distingue. Algo parecido com o que temos hoje? O que será que Calvino nos contaria de “Sampaula”? Poeticamente, Calvino nos diria mais, que muitos hoje são destituídos de lirismo, porém, vestidos de responsabilidade social. Nossos problemas mais agudos, disfarçadamente comensais, como poluição do ar, excesso de veículos, enchentes, crescimento desordenados, favelas em áreas de risco e milhões de outros mais esquecidos de “Sampaula” seriam assim expostos com clareza genuína difícil de ser ver hoje em dia. Essas cidades INsustentáveis, e visíveis, longe das páginas poéticas, sobrevivem talvez à espera de indivíduos e grupos responsáveis que apareçam para alertar seus habitantes de que a pesada rede cinzenta de pó e sujeira em que vivem não é o único caminho para a vida também surreal que levam.

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