quarta-feira, 21 de abril de 2010

Obama: negro por escolha

O presidente negro?!
O presidente Obama criou alguma agitação no início de abril, quando, ao preencher o formulário do Censo Demográfico, no item identidade racial, escreveu “Negro, Afro-americano ou Preto.”
Apesar de ter mãe branca e de ter sido criado durante boa parte de sua vida por avós brancos, Obama optou por identificar-se exclusivamente como negro, ainda que o Censo admitisse várias respostas no quesito da identidade racial.
A escolha desapontou os que lutaram para que povos multirraciais tivessem o direito de indicar, no Censo, toda sua complexa herança racial. E confundiu os que se surpreenderam por o presidente não ter reconhecido oficialmente sua herança branca. A escolha levou a uma enxurrada de matérias políticas que confirmavam que, sim, Obama é, sim, o primeiro presidente afro-americano dos EUA.
Quando Obama preencheu seu formulário do Censo, deu mais uma lição, intensiva, embora não planejada, do que bem poderia ser um seminário sobre construção social das raças. Em apenas alguns poucos anos, décadas de formações multirraciais foram projetadas sobre ele à velocidade supersônica; mais ou menos como naqueles filmes nos quais se assiste ao crescimento de uma macieira, da semente à árvore adulta, em 30 segundos. Quando Hillary Clinton levava significativa vantagem no voto dos negros, a mídia perguntava regularmente se Obama seria “suficientemente negro” para merecer o apoio eleitoral dos afro-americanos. Quando o Reverendo Jeremiah Wright dominou as manchetes, a questão passou a ser se Obama não seria “negro demais” para merecer o apoio eleitoral dos brancos. Nos meses finais da campanha, os adversários de Obama tentaram convertê-lo em não-cidadão, além de muçulmano e terro rista.
Em menos de dois anos, um mesmo corpo fora classificado como, desde insuficientemente negro até excessivamente negro – sempre estrangeiro e estranho, de algum modo; e sempre assustador.
Mas Obama fez mais do que romper as definições-padrão de negritude: criou também uma crise definicional da branquitude.
Imagine-se, por um instante, que um jovem norte-americano tenha caído num sono à Rip Van Winkle em 1960. E que acorde de repente, em 2008, para ver que os EUA vivem eleição presidencial histórica, entre um candidato negro e um candidato branco. Ouve dizer que um candidato é Democrata, formado em Direito na Universidade de Harvard, conferencista convidado da conservadora Faculdade de Direito de Chicago. Ouve dizer também que esse candidato permanece casado com a primeira esposa, que o casal tem duas filhas que estudam em escolas ultraexclusivas. O outro candidato, católico da Igreja Irlandesa, tem uma filha adolescente, solteira e grávida.
Pergunte agora ao nosso recém-acordado norte-americano qual dos dois candidatos é negro e qual dos dois é branco. Lembre-se, ele só conta, como padrões de pensamento sobre raça e política, com o que se consideravam “idéias generalizadas na sociedade” em 1960. Naquele momento, número significativo de negros ainda se identificavam como Republicanos; formação universitária de Ivy League era signo identificatório de branquitude; e carreira militar era oportunidade que interessava mais aos negros que aos brancos. Aquele recém-acordado esperaria que só casamentos de brancos fossem estáveis; e que a imoralidade sexual seria marca do comportamento dos negros.
É altamente provável que nosso recém-acordado concluísse que Obama fosse o candidato branco; e McCain, o negro.
Ao expor todos esses traços da branquitude tradional, a candidatura de Obama abalou a ideia estabelecida do que seja “ser branco” nos EUA. De repente, ser branco já nada tem a ver com sucesso universitário, estabilidade familiar ou excelência no uso do idioma inglês. Talvez haja quem tente argumentar que as intervenções folclóricas de Sarah Palin foram tentativa desesperada para reivindicar e redefinir alguma branquitude, em termos de obsceno amor às armas, idioma inglês muito abaixo de ‘satisfatório’ ou, em outras palavras, o inverso de todos os marcadores do sucesso ‘branco’ tradicional e conservador.
Nesse sentido, a branquitude de Obama é assustadora e estranha a todos que creiam que as categorias racialistas sejam estáveis, significativas e essenciais. Os que anseiam por EUA pós-raciais esperavam que Obama transcendesse a negritude. De fato, o verdadeiro desafio que Obama traz para a ordem racialista dos EUA é que ele rompe os critérios da branquitude – porque, antes de Obama, a branquitude definira a cidadania, garantira acesso aos privilégios e ao poder para definir a história nacional dos EUA.
Em 1998, Toni Morrison escreveu que Bill Clinton seria o primeiro “presidente negro”, porque “exibe todos os tropos da negritude: filho de mãe solteira, nascido pobre, da classe trabalhadora, tocador de saxofone, comedor de comida-lixo do McDonald, um bom filho do Arkansas.” Dez anos depois, o homem que realmente se tornou o primeiro presidente negro dos EUA exibiria poucos desses tropos. Nada de Arkansas, mas o Havaí; sucesso acadêmico, cultura planetária, adepto do comer-saudável. Nesse sentido, Obama seria o candidato branco em 2008 – e muitos eleitores brancos votaram na versão Obama de branquitude, contra a versão McCain e Palin.
O que nos leva de volta à decisão de Obama, ao preencher o formulário do Censo Demográfico. Apesar de poder legitimamente se dizer branco, optou por dizer-se negro.
Como o historiador Nell Painter documenta em seu novo livro The History of White People, a identidade branca sempre foi duramente censurada e policiada, foi uma espécie de fronteira não franqueável, durante praticamente toda a história dos EUA. Os filhos de casal afro-branco podiam ser tomados legalmente como escravos nos EUA, até 1865. De 1877 até 1965, filhos de casal afro-branco eram objeto de segregação racial, em espaços públicos, escolas, moradia e emprego.
Em 1896, a Suprema Corte fixou a doutrina dos “iguais mas separados”, no julgamento de Homer Plessy, mestiço créole de New Orleans, cujos ancestrais eram só parcialmente africanos.
A autoidentificação do presidente Obama, no Censo Demográfico, foi momento de solidariedade com aqueles negros e reconhecimento de que as realidades legais e históricas da raça são definitivas. Que os EUA, sim, sofreram sob o preconceito racial; que ele, presidente, sofreu com os negros – e que, em outros tempos, teria, sim passado pelo que outros negros passaram.
Assim, em abril, Obama fez mais uma vez o que fez várias vezes ao longo da vida: abraçou a negritude, com seus sofrimentos, nenhum privilégio, história tumultuada e simbolismo atormentado. Não negou seus ancestrais brancos, mas oficial e livremente declarou que, nos EUA, para descendentes de negros, ter pai ou mãe branco jamais significou qualquer direito de acesso aos privilégios dos brancos

15/4/2010, Melissa Harris-Lacewell, The Nation (ed. impressa de 3/5/2010)http://www.thenation.com/doc/20100503/harris-lacewell

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